Simulado Instituto Nacional do Seguro Social - INSS | Analista: Outras áreas de formação (Conhecimentos básicos) | 2019 pre-edital | Questão 60

Língua Portuguesa / Tipologia textual


TEXTO 1
SANTOS NA POLÍCIA João Ubaldo Ribeiro

A respeito da polícia, costumamos agir da mesma forma que em relação a outros grupos ou categorias. Quando falamos mal dos
políticos - e não é que não tenhamos razão, é outro aspecto do problema - costumamos descrevê-los como se eles não se originassem
de nós mesmos, o povo brasileiro. Como já disse aqui algumas vezes, não são marcianos, são gente como nós, a maior parte dos
quais com biografias semelhantes às nossas. Aprendemos uma espécie de defesa automática, para exorcizar o grau de
responsabilidade que cada um de nós tem, quer queira ou quer não, e usamos logo a terceira pessoa: os políticos brasileiros fazem
isso ou aquilo, os funcionários públicos idem idem, e assim por diante, nada conosco.
[...]
Com a polícia, o comportamento não é diverso. A polícia são ‘eles’, nunca nós. Não são homens e mulheres nascidos e criados da
mesma maneira que outros brasileiros, são ‘eles’. Claro que nunca defendi (e, aliás, não estou defendendo nada, são somente uns
pontos de vista que quero expor) a brutalidade, a ineficiência ou a corrupção na polícia, nem tampouco encaro os marginais como
gente fina que esta vida cruel levou ao crime, enquanto ignoro as mortes, o sacrifício e o heroísmo de muitos policiais - prática
infelizmente comum na imprensa e em certos grupos de opinião.
Nos últimos dias, tem havido uma cobertura intensiva do crescente número de policiais mortos simplesmente porque carregam uma
carteira funcional, ou vestem um uniforme. Foi polícia, tiro nele. E, porque são ‘eles’, encaramos suas mortes como algo alheio a
nós e já ouvi até gente discursando para que se aja assim, porque afinal ‘essa polícia merece mesmo isso’, é o troco que está
recebendo por não servir bem ou maltratar o cidadão.
Fico imaginando a vida de um policial honesto e, com toda a certeza, independentemente de alguma vocação, não a quereria para
mim ou para ninguém em cujo destino pudesse influenciar. Agora, policiais mal pagos, mal preparados e vergonhosamente
equipados convivem, ainda por cima, com a condenação à morte a que estão sujeitos, simplesmente por exercerem a profissão. E
não só a condenação deles mesmos, mas também de suas famílias, da mulher aos filhos de colo. Vários deles, num ato impensável
em qualquer país civilizado, mandam tirar carteiras de alguma outra profissão, para carregá-las nos bolsos quando estão de folga e
assim escapar da ‘vingança’ dos marginais. Outros escondem dos vizinhos e dos próprios filhos sua condição de policial.
E, ao que tudo indica, estamos achando isso tudo normal. Policial é policial, não só ‘ganha pra isso’ como não é gente como nós, não
tem medo, não tem fraquezas, não é sujeito a inveja, ressentimento, frustração, neurose ou até estresse. Executivo de multinacional
tem estresse, dona de casa tem estresse, jornalista tem estresse, mas policial não, é moleza subir morro enfrentando armas de última
geração e a hostilidade dos que sofrem com isso. Naturalmente, nada justifica atrocidades, brutalidade, venalidade, cumplicidade
com criminosos - o que muitos policiais praticam e continuam praticando. Mas, se está muito longe de justificar, está muitíssimo
perto de explicar.
Que queremos na polícia? Santos? No país em que vivemos, somente santos com vocação ao martírio seriam os policiais que
desejamos. Temos o direito de querer contar com uma polícia eficiente, atuante e respeitada pela comunidade, assim como temos o
direito de exigir (apesar de nunca obtermos) mais ou menos as mesmas coisas de todas as autoridades.
[...]
A maioria de nós que fosse levada à condição de policial agiria até bem pior do que aqueles que critica. Bastariam uns meses, ou
nem tanto, convivendo com a corrupção, que vem de cima e de todos os lados, a iniqüidade, a desonestidade de parceiros, a grana
curta, a execração da imprensa e do público (e quem é o primeiro a oferecer uma cervejinha ao guarda de trânsito, para ele esquecer
a infração, não somos nós? Quem chegou primeiro, o ovo ou a galinha?), o medo de morrer ou encontrar a família morta e tanta
nojeira e pavor em que o policial é obrigado a chafurdar.
Mas não, nós queremos santos, iguais a nós, povo pacífico, cordato, incorruptível e respeitador da lei. Não temos um plano de
segurança pública merecedor desse nome, negligenciamos a polícia, de que só lembramos para criticar, queremos que ela se lixe e
também queremos que, em troca disso, seja exemplar. Quer dizer, queremos santidade. Não me considero exceção pessoal. Também
tenho medo da polícia e também me horrorizo com muito do que ela faz. Acho que temos uma polícia que pode ser qualificada de
ruim ou péssima. Mas também não acho que melhor qualificativo pode ser dado a nós como um todo, com a possível exceção de
alguns padres, frades, freiras, pastores ou rabinos. Chato lembrar, mas a nossa polícia também somos nós, não foi o Diabo que a
criou; fomos e continuamos sendo nós. (Fonte: O Globo, 15/10/00)

Quanto ao gênero discursivo, o texto 1 é um[a]:

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