Simulado Polícia Civil de São Paulo - PCSP | Escrivão de Polícia | 2020 | Questão 384

Língua Portuguesa / Vícios e figuras de linguagem; Figuras de sintaxe


Mesmo os pouco observadores devem ter notado um
novo aparelho na temporada de férias. Tecnologia de ponta?
Só no sentido mais estritamente literal.
Neste ano, o “pau de selfie”, monopé que permite tirar au-
torretratos, conquistou o mercado dos viajantes. Não deixará
de surpreender que em pleno 2015 o homem tenha redesco-
berto a utilidade tecnológica de um bastão.
Na pré-história, o homem vagou pelos bosques apoian-
do-se nele; milhares de anos depois, a moda volta, de forma
distorcida: o instrumento que servia para conectar o homem
com o que estava sob seus pés – a terra – e o apoiava, lite-
ralmente, para abrir passo pelo mundo se converteu em uma
ligação com o mundo superior. Se eu não me vejo, como sei
que existo? Esse novo cajado nos permite uma perspectiva
aérea da existência.
O filósofo alemão Peter Sloterdijk explica que aquilo que
nós entendemos por tecnologia é uma tentativa de substituir
os sistemas imunológicos implícitos por sistemas imunológi-
cos explícitos.
Em nossa época, os sistemas de defesa que criamos
procuram nos isolar de um exterior que se nega a ceder à
tendência individualista da sociedade. Por isso andamos de
um lugar a outro sem renunciar nunca a nosso mundo: nos
transformamos em uma sociedade de caranguejos-eremitas,
carreando no lombo nossas casas. Sentados entre centenas
de passageiros, nos protegemos, com nossos fones de ou-
vidos, celulares e vídeos, do encontro com o exterior. Ago-
ra, o “pau de selfie” nos permite tirar fotos sem a incômoda
necessidade de interagir com estranhos. Nos transformamos
em seres autossuficientes e, em decorrência disso, necessa-
riamente antissociais.
A máxima ironia do mundo globalizado é a crescente in-
sularidade do indivíduo. Como o exterior é impessoal, nos
embrenhamos no interior; como a comunidade nos debilita, a
individualidade se torna preponderante; é assim que a casa
familiar dá lugar ao apartamento individual – e a autogamia
moderna surge.
O fenômeno do “selfie” responde a essa condição insu-
lar e por isso se arraigou como a manifestação estética da
revolução digital. O isolamento do indivíduo é tal que, liberto
do voyeurismo*, teve de conceber um autovoyeurismo: nos
tornamos paparazzi* de nós mesmos. O “selfie” procura es-
conder nossa natureza isolada e solitária sob o verniz da fe-
licidade e do gozo. (Emilio Lezama, Paparazzi de nós mesmos.
Folha de S.Paulo, 30-08-2015. Adaptado)
* Voyeurismo: forma de curiosidade mórbida com relação ao que é
privativo, privado ou íntimo.
* Paparazzi: fotógrafos que perseguem celebridades, para bater
fotos indiscretas.

Com a frase – Se eu não me vejo, como sei que existo?
– o autor destaca, em tom irônico,

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Fonte: CONTADOR / Pref. Suzano/SP / 2016 / VUNESP